Há um escritor que faz da sua marca de vida, o escreViver, como se a escrita fosse a vida em pequenos episódios.
Quando era ainda
quase um pré-adolescente, uma criança da minha escola perguntou o que eu queria
ser, «agora que era grande». Achei estranha a pergunta, não a conclusão evidente
de já ser um jovem alto. Respondi-lhe que queria ser escritor; e lembro-me de
ter passado reflexamente a mão pelo buço onde alguma penugem já começava a
despontar, tentando domar os espinhos que podia uma resposta dessas conter.
Peguei numa caneta e
lápis e tentei desenhar uma figura sentada a uma secretária.
- És tão bonito? –
disse. – E o que faz um escritor? – perguntou de enfiada.
Assustei-me. Corei talvez
com a cor mais avermelhada que alguma vez encontrei desenhada.
Quando levantei os
olhos já se afastava, levada pela roda - viva das amigas «da linda falua que vai para belém» (nunca percebi em toda a minha vida que belém era essa; talvez hoje uma dessa meninas, já adultas, me possa explicar sem ser por um desenho).
Como nunca fui bom desenhador,
ao rodar a imagem para ver o que tinha desenhado, encontrei apenas este retrato que recordo e que não me parece hoje nada adequado a uma resposta a uma criança: mas as crianças são a inocência e o futuro... e o futuro pode ser alterado e moldado com formas a que chamamos valores, para "criarmos" adultos melhores e mais felizes.
O que é um escritor? Um
escritor não é apenas um contador de histórias ou um fazedor de emoções e de
situações: o superficial, o visual, a imagem, a futilidade não são para si prioridades
maiores; apenas a compaixão, o pesar, a tristeza que esconde ou encerra o
turbilhão de sofrimento humano a que somos (e sou, escrevi) particularmente sensível: dói-me,
comove-me e invoca-me para a amizade, para o conforto, para o conserto, o
sofrimento humano.
Nem é mesmo, o
escritor, uma espécie de virgem com o que sente, vê, apalpa, ou uma espécie de
pobre mal - amado, armado com aquela meia casca meio amarelada que o protege da
queda do céu. Para o escritor desenhar e compreender os outros é uma paixão, um «matching» para a vida, uma paixão que sobreleva quantas vezes aos personagens.
Pelo menos não é nada
uma parte disso, virgem dos demónios e pecados, nem sente o mundo dessa forma: não é, assim, pois o escritor, nem
anjo nem diabo; nem vítima, nem algoz; apenas um ser sensível que se completa
e preenche em dar a mão (quantos vezes em ceder o coração para puder mostrar ao
outro como é tão simples cultivar a felicidade) a quem sofre (e tantos os há
sem o saber), e tenta embrulhar o sofrimento num papel bonito, cheio de
rendilhados e floreados e altos - relevos.
Um escritor é assim até
mais um investigador, um pesquisador de emoções, de sentimentos, de lutas
interiores - mais do que as exteriores que um historiador pode facilmente
descrever - de angústias escondidas, de ilusões perdidas, uma espécie de um
taxinomista do outro, um amigo excepcional, daqueles sinceros, espécie cada vez
mais em extinção, dado o envenenamento em continentes de lixo que deixam muitos à superfície, aflitos, a tentar como peixes somente respirar.
Quando o escritor
demonstra ter bom coração por gostar de ajudar demais, de confiar ou dar
demais, de amar demais, é apenas a prova viva de que não é ele o verdadeiro
sofredor por querer preencher essas condições que o fazem um ser humano mais completo.
Mesmo que outros assim o não entendam ou reconheçam, reconhecem aqueles próprios
que amam desinteressadamente o outro, sem condições, ao serem recompensados
interiormente por isso.
E a carne, pequenina, diz-vos quem a si nunca a faltou (ou mesmo o material, que é uma outra
espécie de carne) não vale metade de um espírito tranquilo, criador de
personagens ideais num mundo melhor.
PAS
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