o oráculo de (…)
Tirou
da caixa cada peça e mirou-as de alto a baixo: uma à uma. Às trinta e seis, do
naipe círculo, fez-lhes uma grande roda. Às do naipe Bambu, colocou-as em
linha. Às do naipe «caractere» colocou-as, à vez, de cima para baixo em linha
recta, como se cada uma se apoiasse nas costas da anterior. Às Dong, Nam, Xi,
Bei, bastou-lhe abrir as mãos: foi o vento que se ocupou da sua disposição. Aos
três dragões, seus protectores, Hong Zhong, Fa Cai e Bai Ban, deixou-os a
esvoaçar. Às 4 pedras de flores, à Ameixa, à Orquídea, ao Crisântemo, ao Bambu,
remeteu-as a aprimorar Chun, Xia, Qiu e Dong, as 4 pedras das estações. Quando
as baralhou pareceu contar mais algumas. Uma tinha a forma do desespero; a outra tinha inscrito danos colaterais; a terceira, das
excedentes, dizia irmãos; a quarta,
em quaternário, deu-lhe um arrepio. Dizia: custe
o que custar; a quinta e sexta chamaram-lhe ainda mais a atenção, porque
tinha inscrito nomes. Dois nomes, apenas: Pedro
e Cristina! Foi aí que lhes conheceu
a história verdadeira. O oráculo nunca se enganava! E muito menos vivia levada
pelo vento da rodada, na ilusão da mentira!
(pedro e Cristina)
-
Hei, tu… sim, tu! Estou-te a chamar. Não ouves? Não queres ouvir? Não levantes
os ombros! Não fujas!
-
Eu sei! É um problema de saúde pública.
-
Desse tipo de saúde? Infecciosos? Não, não estamos infectados, nem somos
leprosos! É preciso coragem? É, e muita! O que achas irmã? Não poderíamos ter
usado esta coragem para nos levantarmos?
-
Levantar-me, irmão? Mas eu levanto-me todos os dias, só não levanto a minha
dignidade que se mantêm em baixo, dobrada ao peso dos dias. Ficámos sem casa;
ficámos sem mãe; morreu o nosso anjo!
-
E agora o que fazemos? Nunca trabalhámos, pelo menos desse trabalho, do
assalariado, do que vende o tempo a troco de quase nada, quantas vezes a alma,
que não retribui com um sorriso, uma palavra agradável, um afago, um carinho, o
esforço, quantas vezes a lealdade, a amizade, a entrega, pelo menos eu, que tu
eras um publicitário, um garboso publicitário, irmão lindo, cruzavas as
palavras umas com a outras, rimava-as, adocicava-as, vendias ilusões,
arrastavas donas de casa e consumidores, até que um dia, um homem petulante,
sem coração, um dito tecnocrata, te tirou do caminho, bem sei, com mil
desculpas, eu não tenho culpa, peço perdão, mas a culpa é de quem nos exige
mais cada dia, uma taxa, uma sobretaxa, um imposto, um sobreposto, um custo, um
sobrecusto, uma portagem, uma comissão, em nome da dívida, em nome do deficit,
em nome do utilizador - pagador, em nome do pagador - poluidor, em nome da
democracia, em nome da sustentabilidade, em nome da política, em nome de um
povo, e uma mulher de crista levantada te tirou, nos tirou depois do teu,
nosso, que tu sempre foste desprendido, solidário, generoso, o exíguo ganha -
pão, o tecto, nosso pobre abrigo, levado por um senhorio ganancioso, ou talvez
não, porque também pobre, ou abusado, em nome do contribuinte utilizador, pelo
que lhe exigiram de imposto, reavaliado que foi o peso do seu bolso, à procura
de qualquer tinido, forte com os fracos, João sem Terra, fraco com os fortes,
João com Terra, com a polícia, com as forças armadas, com outros políticos, que
temem, que revezam, donos das nossa vidas, até as esvaziarem, até nos
conspurcarem com o mísero assistencialismo, com a derrota do estado social,
seja isso o que for, aquele que não vive de esmolas, de coitadinhos, de gestos
grandíloquos e incorrentes, de festas de recolha de fundos, de socialites, que
se julgam o máximo, tiazinhas de trazer por casa, cheias de batom, de rimmel,
de pó de arroz, quais palhaços ricos que conduzem os pobres até à ravina em que
se despenham.
-
E têm estes abusadores nome?
-
Têm! Eles aí andam, em diferentes geografias, aos magotes, com um brilho
escondido nos olhos, com contas na Suíça, imunes à crise, comentadores
profissionais de trazer por casa, senhores de redes recorrentes, de interesses,
de rede de negócios, de redes de maçonaria, fazedores de notícias sem novas,
disfarçados de novas vítimas, algozes sem castigo, inconscientes q.b. quantas
vezes das consequências das suas medidas.
-
Olha agora aqui! Aqui estamos, prestes ao sacrifício, problema de saúde
pública, vírus que ateastes à nossa cidade, cada vez mais, irmãos que
descartaste, sombras que não vês, entorpecida pelos vidros foscos da tua
viatura, pelo lusco - fusco dos teus óculos escurecidos, ou pelo espelhado que
refracte, ou reflecte e reencaminha, com que te passeias, com que te destacas,
te diferencias, escuridão que ateaste, coração que se tornou metálico,
endurecido, rugoso, gorduroso, cavernoso.
-
Olha agora aqui, estamos aqui, nesta plataforma, forrada a azulejos, azulejos
antigos, com desenhos da nossa história trágico-marítima, agora trágico -
terrena, de mão dada, irmãos para a vida, irmãos para a morte, junto à estação
onde sempre morámos, antes de sermos despejados, despojados do mínimo de
dignidade, pela tua ideologia liberal, a vida a quem a trabalha, a vida a quem
a merece, pelo esforço, pelo sucesso, pelas vitórias, pelas conquistas de todos
os dias, contra a preguiça, contra as armadilhas da vida, a favor do elevador
social, não oleado, travado no seu funcionamento, no seu funcionalismo, no seu
mecanismo, por uma cunha, que não é um factor, apenas uma realidade da vida, a
sorte e o azar, a sorte a quem a merece, a quem a procura, a morte ao fraco, ao
excluído da condição, ao excluído da sorte.
-
Mas eu nasci pobre, nós nascemos pobres, não vivemos uma infância de maravilha,
tivemos apenas uma mãe, que nos mimou, que nos adorou, que nos glorificou, mas
nunca fomos cristãos, isso deixamos para os outros, para aqueles que dizem ter
coração, para os poderosos, para os influentes, para os que vivem na teia,
alguns na corrupção, mesmo que seja só dos sentidos, dos interesses, das
oportunidades, dos oportunismos, nem todos são como tu, nascido em berço de
ouro, inteligente, bem provido, confiante, delirante, narciso, mentiroso, da
raça dos que nunca têm dúvidas, raramente se enganam, daqueles que rejeitam a
sua infância, as suas raízes, a sua condição de seres frágeis humanos.
-
E agora, nós, de nosso nome Pedro e Cristina, moradores de uma outra rua de
Angola, que não a Angola da nossa infância, nos cinquenta, que já não nos dá esperança
no futuro, nem esperança em ti, desesperados, sós, com falta de dinheiro, em
pobreza extrema, falta do outro solidário, sem abrigo nas ruas desta Lisboa,
deste mundo, vizinhos dos que vivem em alçapões, em caixas de cartão, debaixo
de tampas de esgoto, uns alienados, outros dormentes, outros deficientes,
outros anestesiados, outros doentes, outros enlouquecidos, outros sem memória,
madrasta para muitos, amiga para muito poucos, esperamos o trem que nos levará
ou arrastará para sempre, para fora desta estação, desta camisa - de - forças
da nossa condição, da pobreza malvada, que nos tornará para sempre viajantes
sem bilhete, vitalícios fantasmas da nossa cidade, a quem chamaram outrora
polis, e do teu, do seu, carácter.
«Fico muito triste. Eles
não tinham ninguém», contou Maria Otília, 77 anos, prima afastada e única
familiar notificada a M., através daquelas páginas enegrecidas do jornal da
manhã, correio, no ano anterior à sua morte, ano posterior aos cem anos de
comemoração da implantação da república, ano em que repousavam nos cemitérios dezenas
ou centenas de milhões de vítimas da história como ensinamento, ou
esquecimento, irmãos colaterais, em nome do desespero, muros de mahjong, que
somos incapazes de derrubar.
Pedro A. Sande
(O
desespero pela falta de dinheiro e a solidão de Cristina e Pedro, dois irmãos
de 53 e 57 anos, que viveram o último ano como sem-abrigo, nas ruas de Lisboa,
acabaram anteontem à noite em tragédia. Os dois decidiram pôr termo à vida,
lançando-se para a frente de um comboio, às 21h30, na estação de Paço de Arcos.
Cristina
teve morte imediata, mas o irmão Pedro foi ainda transportado com vida para o
Hospital de S. Francisco Xavier, Lisboa, vindo a falecer de madrugada devido
aos múltiplos traumatismos. As razões para a tragédia estão explicadas numa
carta de despedida, encontrada no bolso das calças de Pedro – desempregado há
anos, depois de ter trabalhado numa empresa de publicidade. A irmã nunca
trabalhou. "Estava escrito que se sentiam abandonados e viviam em pobreza extrema
devido à crise económica", diz ao CM fonte policial. "Fico muito
triste. Eles não tinham ninguém", conta Maria Otília, 77 anos, prima
afastada e única familiar notificada.
Cristina
e Pedro viveram sempre com a mãe na casa arrendada na rua de Angola, Lisboa,
até à sua morte no ano passado, aos 88 anos. Foi aí que os dois se viram
despejados e tiveram de viver na rua, até terem acabado com as próprias vidas.
Por: sara g. carrilho; Correio da Manhã; 21/09/2011)