Citações:

Sem o direito natural não há Estado de direito. Pois a submissão do Estado à ordem jurídica, com a garantia dos direitos humanos, só é verdadeiramente eficaz reconhecendo-se um critério objetivo de justiça, que transcende o direito positivo e do qual este depende. Ou a razão do direito e da justiça reside num princípio superior à votante dos legisladores e decorrente da própria natureza, ou a ordem jurídica é simplesmente expressão da força social dominante
(José Pedro Galvão de Sousa, brasileiro, 1912-1992)

quarta-feira, 6 de março de 2013

O Oráculo De Pedro E Cristina, Extraído Do Livro Dos Contos Siameses




Do meu livro

«O livro dos contos siameses»


o oráculo de (…)

Tirou da caixa cada peça e mirou-as de alto a baixo: uma à uma. Às trinta e seis, do naipe círculo, fez-lhes uma grande roda. Às do naipe Bambu, colocou-as em linha. Às do naipe «caractere» colocou-as, à vez, de cima para baixo em linha recta, como se cada uma se apoiasse nas costas da anterior. Às Dong, Nam, Xi, Bei, bastou-lhe abrir as mãos: foi o vento que se ocupou da sua disposição. Aos três dragões, seus protectores, Hong Zhong, Fa Cai e Bai Ban, deixou-os a esvoaçar. Às 4 pedras de flores, à Ameixa, à Orquídea, ao Crisântemo, ao Bambu, remeteu-as a aprimorar Chun, Xia, Qiu e Dong, as 4 pedras das estações. Quando as baralhou pareceu contar mais algumas. Uma tinha a forma do desespero; a outra tinha inscrito danos colaterais; a terceira, das excedentes, dizia irmãos; a quarta, em quaternário, deu-lhe um arrepio. Dizia: custe o que custar; a quinta e sexta chamaram-lhe ainda mais a atenção, porque tinha inscrito nomes. Dois nomes, apenas: Pedro e Cristina! Foi aí que lhes conheceu a história verdadeira. O oráculo nunca se enganava! E muito menos vivia levada pelo vento da rodada, na ilusão da mentira!   


(pedro e Cristina)


- Hei, tu… sim, tu! Estou-te a chamar. Não ouves? Não queres ouvir? Não levantes os ombros! Não fujas!
- Eu sei! É um problema de saúde pública.
- Desse tipo de saúde? Infecciosos? Não, não estamos infectados, nem somos leprosos! É preciso coragem? É, e muita! O que achas irmã? Não poderíamos ter usado esta coragem para nos levantarmos?
- Levantar-me, irmão? Mas eu levanto-me todos os dias, só não levanto a minha dignidade que se mantêm em baixo, dobrada ao peso dos dias. Ficámos sem casa; ficámos sem mãe; morreu o nosso anjo!
- E agora o que fazemos? Nunca trabalhámos, pelo menos desse trabalho, do assalariado, do que vende o tempo a troco de quase nada, quantas vezes a alma, que não retribui com um sorriso, uma palavra agradável, um afago, um carinho, o esforço, quantas vezes a lealdade, a amizade, a entrega, pelo menos eu, que tu eras um publicitário, um garboso publicitário, irmão lindo, cruzavas as palavras umas com a outras, rimava-as, adocicava-as, vendias ilusões, arrastavas donas de casa e consumidores, até que um dia, um homem petulante, sem coração, um dito tecnocrata, te tirou do caminho, bem sei, com mil desculpas, eu não tenho culpa, peço perdão, mas a culpa é de quem nos exige mais cada dia, uma taxa, uma sobretaxa, um imposto, um sobreposto, um custo, um sobrecusto, uma portagem, uma comissão, em nome da dívida, em nome do deficit, em nome do utilizador - pagador, em nome do pagador - poluidor, em nome da democracia, em nome da sustentabilidade, em nome da política, em nome de um povo, e uma mulher de crista levantada te tirou, nos tirou depois do teu, nosso, que tu sempre foste desprendido, solidário, generoso, o exíguo ganha - pão, o tecto, nosso pobre abrigo, levado por um senhorio ganancioso, ou talvez não, porque também pobre, ou abusado, em nome do contribuinte utilizador, pelo que lhe exigiram de imposto, reavaliado que foi o peso do seu bolso, à procura de qualquer tinido, forte com os fracos, João sem Terra, fraco com os fortes, João com Terra, com a polícia, com as forças armadas, com outros políticos, que temem, que revezam, donos das nossa vidas, até as esvaziarem, até nos conspurcarem com o mísero assistencialismo, com a derrota do estado social, seja isso o que for, aquele que não vive de esmolas, de coitadinhos, de gestos grandíloquos e incorrentes, de festas de recolha de fundos, de socialites, que se julgam o máximo, tiazinhas de trazer por casa, cheias de batom, de rimmel, de pó de arroz, quais palhaços ricos que conduzem os pobres até à ravina em que se despenham.
- E têm estes abusadores nome?
- Têm! Eles aí andam, em diferentes geografias, aos magotes, com um brilho escondido nos olhos, com contas na Suíça, imunes à crise, comentadores profissionais de trazer por casa, senhores de redes recorrentes, de interesses, de rede de negócios, de redes de maçonaria, fazedores de notícias sem novas, disfarçados de novas vítimas, algozes sem castigo, inconscientes q.b. quantas vezes das consequências das suas medidas.    
- Olha agora aqui! Aqui estamos, prestes ao sacrifício, problema de saúde pública, vírus que ateastes à nossa cidade, cada vez mais, irmãos que descartaste, sombras que não vês, entorpecida pelos vidros foscos da tua viatura, pelo lusco - fusco dos teus óculos escurecidos, ou pelo espelhado que refracte, ou reflecte e reencaminha, com que te passeias, com que te destacas, te diferencias, escuridão que ateaste, coração que se tornou metálico, endurecido, rugoso, gorduroso, cavernoso.
- Olha agora aqui, estamos aqui, nesta plataforma, forrada a azulejos, azulejos antigos, com desenhos da nossa história trágico-marítima, agora trágico - terrena, de mão dada, irmãos para a vida, irmãos para a morte, junto à estação onde sempre morámos, antes de sermos despejados, despojados do mínimo de dignidade, pela tua ideologia liberal, a vida a quem a trabalha, a vida a quem a merece, pelo esforço, pelo sucesso, pelas vitórias, pelas conquistas de todos os dias, contra a preguiça, contra as armadilhas da vida, a favor do elevador social, não oleado, travado no seu funcionamento, no seu funcionalismo, no seu mecanismo, por uma cunha, que não é um factor, apenas uma realidade da vida, a sorte e o azar, a sorte a quem a merece, a quem a procura, a morte ao fraco, ao excluído da condição, ao excluído da sorte.          
- Mas eu nasci pobre, nós nascemos pobres, não vivemos uma infância de maravilha, tivemos apenas uma mãe, que nos mimou, que nos adorou, que nos glorificou, mas nunca fomos cristãos, isso deixamos para os outros, para aqueles que dizem ter coração, para os poderosos, para os influentes, para os que vivem na teia, alguns na corrupção, mesmo que seja só dos sentidos, dos interesses, das oportunidades, dos oportunismos, nem todos são como tu, nascido em berço de ouro, inteligente, bem provido, confiante, delirante, narciso, mentiroso, da raça dos que nunca têm dúvidas, raramente se enganam, daqueles que rejeitam a sua infância, as suas raízes, a sua condição de seres frágeis humanos.  
- E agora, nós, de nosso nome Pedro e Cristina, moradores de uma outra rua de Angola, que não a Angola da nossa infância, nos cinquenta, que já não nos dá esperança no futuro, nem esperança em ti, desesperados, sós, com falta de dinheiro, em pobreza extrema, falta do outro solidário, sem abrigo nas ruas desta Lisboa, deste mundo, vizinhos dos que vivem em alçapões, em caixas de cartão, debaixo de tampas de esgoto, uns alienados, outros dormentes, outros deficientes, outros anestesiados, outros doentes, outros enlouquecidos, outros sem memória, madrasta para muitos, amiga para muito poucos, esperamos o trem que nos levará ou arrastará para sempre, para fora desta estação, desta camisa - de - forças da nossa condição, da pobreza malvada, que nos tornará para sempre viajantes sem bilhete, vitalícios fantasmas da nossa cidade, a quem chamaram outrora polis, e do teu, do seu, carácter.
 
«Fico muito triste. Eles não tinham ninguém», contou Maria Otília, 77 anos, prima afastada e única familiar notificada a M., através daquelas páginas enegrecidas do jornal da manhã, correio, no ano anterior à sua morte, ano posterior aos cem anos de comemoração da implantação da república, ano em que repousavam nos cemitérios dezenas ou centenas de milhões de vítimas da história como ensinamento, ou esquecimento, irmãos colaterais, em nome do desespero, muros de mahjong, que somos incapazes de derrubar.
Pedro A. Sande

(O desespero pela falta de dinheiro e a solidão de Cristina e Pedro, dois irmãos de 53 e 57 anos, que viveram o último ano como sem-abrigo, nas ruas de Lisboa, acabaram anteontem à noite em tragédia. Os dois decidiram pôr termo à vida, lançando-se para a frente de um comboio, às 21h30, na estação de Paço de Arcos.
Cristina teve morte imediata, mas o irmão Pedro foi ainda transportado com vida para o Hospital de S. Francisco Xavier, Lisboa, vindo a falecer de madrugada devido aos múltiplos traumatismos. As razões para a tragédia estão explicadas numa carta de despedida, encontrada no bolso das calças de Pedro – desempregado há anos, depois de ter trabalhado numa empresa de publicidade. A irmã nunca trabalhou. "Estava escrito que se sentiam abandonados e viviam em pobreza extrema devido à crise económica", diz ao CM fonte policial. "Fico muito triste. Eles não tinham ninguém", conta Maria Otília, 77 anos, prima afastada e única familiar notificada.
Cristina e Pedro viveram sempre com a mãe na casa arrendada na rua de Angola, Lisboa, até à sua morte no ano passado, aos 88 anos. Foi aí que os dois se viram despejados e tiveram de viver na rua, até terem acabado com as próprias vidas. Por: sara g. carrilho; Correio da Manhã; 21/09/2011)

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