Artur! Porque haveremos todos de
querer ser Prousts, podendo ter apenas uma costela do senhor? Será o nosso
espírito grandiloquente ou haverá em nós uma bipolaridade que nos remete
singularmente do passado ao futuro, sem nunca passar pelo presente?
ALP, sem dúvida! O século das
massas, não é só nas prateleiras dos supermercados. E o século das massas
dá-nos novos direitos culturais que criam uma sociedade de nichos, matrioskas
de gostos de dimensões variadas. O gosto deixou, assim, de ser espartilhado,
mesmo que nos supermercados só se venda marca branca por questões financeiras.
As editoras têm assim os seus espartilhos, mesmo que muitos de nós gostássemos
de ter um TGV até à nossa porta e que fizesse entregas «à la minute».
Espiral diz: «As pessoas podem
escrever e publicar livros, mas escrever e publicar livros não é ser escritor».
Não sei se é ou não, porque para mim um escritor é quem escreve por gosto -
mesmo que escreva no ar espalhando versos pela atmosfera e que à boa casa
retornam como os boomerangs, depois de imensos ricochetes em inúmeros
obstáculos. Tal como os poetas escritores orais como o Aleixo - e outros que
tais. Os obstáculos sempre lá estarão e mudarão de forma, todo os dias. Como
procuro não pensar em espiral - porque tudo o que é espiral faz-me tonturas e fazer
perder o norte - diria que não existem escritores a sério, existem, sim, livros
a sério - que tocam algumas dimensões, mas não todas. Acabei de ler a Dulce
Maria Cardoso que me tocou e sugestionou a dimensão «dos meus sentimentos», mas
não outras. Faltou (me) emoção e aventura; delírio, não! Estava lá todo! E, no
entanto, a Dulce é uma senhora escritora, um prodígio, mas não um prodígio nem
um dia de delírio para todos os meus dias. Talvez o dia fosse propício a outras
dimensões e aventuras; talvez o meu dia estivesse mais para ler «A mão do
diabo» do José Rodrigues dos Santos ou o «Pão que o Diabo amassou» - que o Gaspar escreve por entre as folhas do orçamento e que muitos confundem com as folhas de alface e as verduras de que gostariam de pôr na sopa. Repare que mesmo lendo «a mão…» já não era o seu pescoço alto e esticado que via, mas uma figura baixa e atarracada, olheirenta, uma dimensão mais genial e arrastada Gaspariana.
A melhor aprendizagem que me foi
transmitida nos últimos tempos, porque se formos como as esponjas poderemos
sempre mais absorver do que aspergir, foi: «um ponto de vista, é apenas a vista
de um ponto!» Genial, pensei eu: é que o meu ponto nem sempre está calibrado.
Calibrado, essa palavra, tão em voga, tão em moda, esse buraco da agulha que
alguns julgam de dimensão única. E quando entreguei a minha última tese,
defenestrei como um selvagem, todo o formalismo conservador da academia.
«Escreve, razoavelmente bem»
dizia o orientador vindo do país de Hergé, como se o razoável pudesse adormecer
à janela abraçado com o bem, «levanta questões pertinentes, inovadoras, mas é
avesso ao formalismo e às regras da academia indígena». «Mas e a tese»,
perguntava-me eu.
Há sempre um mas num mundo de
repetição, num mundo barato, presente - passado, até nos não indígenas - já
influenciados por uma atmosfera tristonha e opressiva.
«Pois, essa!» respondi, sem me
importar minimamente em «calibrar a mensagem, como é mister hoje em Portugal,
com p pequeno», já que me senti um cow-boy (naquela altura não sei se mais um
rapazinho que um boi!)
E foi aí que, olhando para a
janela, tive a certeza: vi um corvo velho, zangado, negro e cinzento, que
voltava sempre e sempre para o mesmo ninho, como se vivesse em volteio, voando
em voos baixinhos, curtinhos, enquanto ao alto uma gaivota fazia como a Fernão:
voava à altura e liberdade dos grandes espaços; livre como um passarinho, como
o Fernão Pinto.
E mesmo que lhe perguntassem:
«Fernão! Mentes?»
«Minto!», respondia, «mas
sinto-me livre como um escritor e um passarinho!»