CANÇÃO DO BOM POVO PORTUGUÊS:
O TAL QUE SABE TUDO, DE TUDO,
SEM QUERER SABER DE NADA,
Se o povo ouvisse o Jorge Bateira,
Mas para o bom povo Português
Ouvir os outros é, fatal como o destino,
Reportadamente, despiciendo.
O povo sabe tudo sem estudar quase nada.
O povo sabe tanto de finanças como o financeiro.
Tanto de economia como o economista.
Tanto de construção como o engenheiro.
Tanto de medicina como o médico especialista.
Tanto de matraquilhos como os bonecos,
Vestidos à medida do Vermelho, Azul ou Verde,
Tanto da melhor carne como o açougueiro.
Tanto de trajectórias, ziguezagues,
Potência de chuto e pontapé na atmosfera,
Ciência exacta de futebol como o treinador.
Tanto de marcar golos como o futebolista.
O povo sabe tudo e não sabe nada.
Como o avançado campista.
Nem recua a defender o seu meio-campo,
Que não quer queimar as pestanas
Cansar ou intumescer as pernas,
Essas deixa-as para coisas mais prazerosas
E maliciosamente terrenas,
Muito menos andar às arrecuas
Para defender a sua, a nossa, baliza.
Limita-se, assim, a mandar bocas.
Como o vulgar apanha bolas e redondas.
Limita-se a comentar que as "ripa-na-rapa-peca"
Parecem, nos pés destoutro, umas ovais melancias.
Limita-se a comentar como fazer entrá-las,
Mesmo quando a baliza está toda escancarada,
Porque há muito o campo é um povoado deserto
Já só habitando nele velhos
E as vorazes marabuntas —
Bem como as imperdíveis múmias do Restelo.
E quando está aflito grita:
«Que, ai, Jesus, que estou à rasca!»
Nem para a mais minúscula carcaça,
Nem para as argamassas com que se colocam,
Alinhados, um após outro, tijolos,
Talvez porque a sua bitola
Vista por uma lente que lhe enxertaram à nascença
Nos olhos da barriga, que os da cara
Andam quase sempre turvos,
Que com a cegueira não se brinca,
Que lhe é intrinsecamente congénita.
Do tudo que para ele é nada.
Esse episódio extra planetário
Seja um luxo desnecessário,
O bom povo Português é assim.
Nos breves momentos de glória,
Em imensos tempos sem história.
Tão esperto com o vizinho do lado,
Que esperteza matreira não é inteligência,
Quanto mais consciência crítica
Ouvisse ele, o povo, o Jorge Bateira
E talvez não fosse frito,
Ou cozido sem o alinhavar, certeiro,
Perfeito, das velhas cerzideiras.
Fosse ele menos "gargantola",
Provido de compêndios, manuseador de livros,
Que são bolas de todas as cores
E feitios, redondinhas de letras
Com que se marcam os golos
Em todas as balizas do mundo,
A começar pelas barrigas dos meninos
E achaques dos velhos e dos doentinhos.
É que querer fazer tudo do nada